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“Há crenças que existem porque não há espaço para perguntar. As crianças precisam desse espaço”

Ao psicólogo Carlos Oliveira foram chegando relatos de jovens e adultos LGBTQ+ com “dificuldades” no contacto com os serviços de saúde. “Foi para fazer algo que não existia" que surgiu o “Bússola”.

28 fevereiro 2022 > 10:22

“Já era uma vontade com alguns anos”. Após ficar a par do acompanhamento “frágil” e da ausência de respostas especializadas na região do Ave para jovens e adultos da comunidade LGBTQ+, o psicólogo criou o projeto "Bússola", no âmbito da Casa do Povo de Fermentões (CPF), para garantir esse apoio. 

 

O Bússola aparece para dar respostas à comunidade LGBTQ+. Qual foi o processo de idealização e materialização da ideia?

Esta ideia já surgiu há uns anos. Por interesse e pela necessidade – via que não existiam resposta aqui, de atendimento, mas também para falar destes temas com outros profissionais. No ano passado, falava-se, na CPF, que era preciso ter ideias novas, tentamos perceber o que fazia falta – não só em Guimarães, mas no distrito. Tinha esta ideia na gaveta e voltei a apresentá-la. Esta direção tomou posse em 2021 e achou por bem avançar. Era uma resposta muito necessária.

 

A criação do gabinete é impulsionada por pessoas da comunidade? Houve mais urgência a partir da chegada de relatos?

Foi por conversa com colegas. Ia perguntando a colegas de Matosinhos, por exemplo, e diziam que não tinham pedidos de Guimarães ou de Vizela. Sempre achei estranho – apesar de sabermos que estamos inseridos num contexto mais conservador. Também nos vamos apercebendo que vão existindo discursos de ódio, impregnados aqui e ali no nosso dia a dia, e não há ninguém que fale no contrário. Eu ia às escolas noutro tipo de trabalho e nunca via este tema num placard ou uma ação de sensibilização. Mais do que ouvir relatos de pessoas que precisavam de acompanhamento, eu apercebia-me que isto não era falado. Havia aqui um vazio. Organizou-se uma marcha [do orgulho] em Braga...

 

Houve uma em Guimarães, também.

Houve, sim. Um caso isolado. Mas é importante falar sobre isto e que isto faça parte da rotina, para que as pessoas procurem respostas. E isso não havia. E também pergunto: ‘Iam procurar onde?’ Eu hoje contacto com profissionais e eles diziam: ‘Olha, eu provavelmente até estou a proceder erradamente, mas é por desconhecimento, ninguém me disse como devia fazer e não tinha a quem recorrer’. Um dos objetivos deste gabinete é, para além de dar apoio à comunidade LGBTQ+, também chegar aos seus/suas familiares.

 

Como se chega até às famílias?

Foi um vazio que nós fomos detetando. Fui notando que famílias que se deparam com a situação de um filho com questões relacionadas com identidade de género ou orientação sexual querem procurar ajuda. Quando uma família ou a própria pessoa tem dúvidas é muito importante a abordagem. Provavelmente as famílias vão procurar ajuda um médico de família ou um profissional de saúde de acompanhamento. E esse profissional pode pode não estar dotado de competências, pode agir erradamente sem querer.

 

Muitas vezes também falta empatia?

Exatamente, sim. Do contacto que estabeleço com profissionais de saúde, percebe-se que não estão tão próximos da comunidade como um gabinete destes está. E às vezes não percebem ou aprofundam, porque se calhar não faz sentido, na consulta, questões relacionados com o contexto socioeconómico, sociofamiliar, o que é que está ali a impedir processos de mudança, se calhar estes gabinetes fazem mais sentido porque estão mais perto da comunidade.

 

Falou que nas escolas não havia ações de sensibilização deste género.  A visita às escolas é importante para descortinar desconhecimentos, receios de alunos e docentes?

Começámos [o Bússola] em finais de junho e as escolas sempre foram uma preocupação nossa. Tenho tido respostas positivas e não tão positivas. Na maior parte das vezes não obtenho resposta. Não sei se é o tema que assusta, já tive feedback de algumas escolas que se assustaram e reportam-se a situações de comunicação social como o episódio da aulas de cidadania em Famalicão: esse acontecimento está muito presente. Tenho muitas solicitações de fora do concelho. Há escolas que nos recebem com um entusiasmo muito grande, do género: "Ainda bem que veio falar sobre isto, é uma necessidade que nós temos".

 

Algumas de Guimarães?

Sim. O caminho vai-se fazendo. Em seis meses conseguimos chegar a muitos jovens a partir de ações sensibilização. Há um programa construído para falar sobre estas questões em todos os níveis de ensino, com informação adaptada à idade, em que abordamos questões de bullying contra pessoas LGBTQ+, o que é a identidade de género ou orientação sexual. Temos sessões marcadas para este ano na Fernando Távora e nas Taipas. Passamos pela Cisave, também. Conseguimos chegar à população mais jovem e falar sobre estas questões – e há muitas dúvidas.

 

Que retrato faz do que encontra nas escolas?

Tenho visto crianças mesmo de idade muito novas, com 12 anos, extremamente bem formadas, sabem o que é ser LGBTQ+, o que é isto de expressão de género. E quando pergunto como sabem, respondem que ouviram falar sobre o tema em casa, foram pesquisar. O que aprendem no contexto escolar é mais residual. Infelizmente, na maior parte ouço comentários bastante complicados. Chego ao ponto em que prefiro desligar o powerpoint e abordar o que estão a dizer, por serem discursos complicados, que pensava não existirem.

 

Por estarmos a falar de jovens?

Sim. Falo de alunos com 18 ou 19 anos com perguntas do género: "Porque é que num casal de lésbicas há
uma que faz de homem?". E toca a desmontar isto. Ou: “Eu não tenho nada contra gays, mas se se aproximam de mim, esqueça”. Desmontar novamente estes preconceitos que têm associados à comunidade LGBTQ+. Outra coisa com a qual me debato muito é a questão do insulto: o "tu és gay, és lésbica". Há ali uma boa oportunidade para refletir sobre estas questões. Porque nas escolas isto é
o dia a dia. Não conseguimos falar de tudo, mas acredito que algumas questões ficam. Há crenças que existem porque não há espaço para perguntar. As crianças precisam desse espaço. Há crenças muito enraizadas na nossa cultura. Há nas escolas com profissionais com muita vontade de aprender, por vezes inseguros sobre e se estão a proceder bem. Chegamos a 45 profissionais da área da educação e ação social.

 

O contexto de pandemia não deve ter ajudado. Os sucessivos confinamentos deixaram muitas pessoas da comunidade “num contexto negativo”, diz um estudo da Universidade do Porto. Com pouco mais de meio ano de projeto, sente isso?

A procura de atendimentos individualizados é quase nula. E eu não consigo explicar porquê. Tive 23 atendimentos nos últimos seis meses, mas não são 23 casos. São casos com continuidade de tempo. Acontece alguém ter dúvidas sobre encaminhamento para consultas de sexologia e há articulação com os serviços de saúde – faltava a agilização deste processo de encaminhamento para consultas. Já recebi famílias de outro concelho, porque viram o nosso cartaz. Recebi a família toda, foi tudo esclarecido: a questão do nome das escolas, como mudar o nome no cartão de cidadão. Recentemente, tivemos uma solicitação de atendimento online. E isso faz todo o sentido. A pessoa pode até nem estar longe, ser alguém de um concelho vizinho.

 

Disse que os discursos de ódio estão impregnados no nosso dia a dia. O Bússola quer dizer “estamos aqui”, mas teme o agudizar e multiplicar desses discursos?

O medo é inibidor. Quando as pessoas têm medo e há um discurso de medo a circular, se não tiverem um contexto familiar e formal bastante sustentado, não vão dar nenhum passo. Numa ação de formação no Luxemburgo, com outros profissionais, conheci pessoas da Hungria que trabalham em escolas e estes temas são proibidos até aos 18 anos. Em Portugal falamos abertamente, mas circulam discursos de medo, ódio, a invenção da ‘ideologia de género’. Agora há muitos projetos pelo país inteiro, que surgiram este ano, estamos em contacto. Do norte a sul já vão existindo algumas associações. Espero que nos consigamos ramificar com algum relevo aqui no Minho.

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